sexta-feira, 26 de julho de 2019

Entrevista com o médico e professor Nelson Ibañez: “O paciente deve ser sujeito e não objeto do sistema de saúde”.


(Foto: Araquém Alcântara)

O Brasil atravessa simultaneamente dois fenômenos que exigem atenção, planejamento e capacidade de compreensão de gestores, profissionais de saúde e dos pacientes. A chamada transição demográfica nos conduz a uma sociedade mais envelhecida. Já a transição epidemiológica nos leva a um mundo onde as doenças crônicas exigem um modelo e uma intensidade do cuidado que as doenças agudas dos séculos XIX e XX não exigiam. Esses fenômenos acontecem em sociedades em desenvolvimento. Os países com alto nível de qualidade de vida também passaram por este processo de mudanças, mas com uma diferença fundamental: o tempo. O Brasil está no meio destes processos e terá duas ou três décadas para fazer o que países da Europa e Ásia tiveram quase 100 anos.

Outro ponto é que essas transições, necessariamente, não acontecem ao mesmo tempo, como está se dando no Brasil. Mas, afinal, já estamos lidando com esses fenômenos, com a importância que têm para a reconfiguração da sociedade? O que cabe aos pacientes? E aos profissionais de saúde e gestores? Ao Estado? Quais os deveres e responsabilidades? O velho modelo de atenção às doenças agudas ainda nos servirá para assistir nossos doentes do século XXI? Para tratar desses temas de maneira mais precisa falamos com Nelson Ibañez, professor da Faculdade de Ciência Médicas da Santa Casa de São Paulo e pesquisador do Centro de Estudos Augusto Leopoldo Ayrosa Galvão (CEALAG).

Leia um trecho da entrevista concedida ao grupo Região e Redes em 2018:

RR – A visão que se tem sobre o paciente muda do modelo de cuidado voltado para doenças agudas para as crônicas?

NI – A percepção do doente precisa fazer parte do universo do sistema de saúde. Às vezes nós excluímos o indivíduo sem reconhecer essa pessoa que está submetida a determinantes sociais e que sofre esse processo de diferentes maneiras. Apesar de nossa Constituição estabelecer o SUS como um sistema universal e colocar atrás desse sistema a razão democrática e cidadã eu ainda permaneço vendo esse indivíduo como objeto do meu sistema e não como sujeito. Ao agir dessa maneira as minhas ações são, de certa forma, “autoritárias”.

RR- No Brasil temos que lidar com três agendas simultaneamente: a do passado, a do presente e a do futuro…

NI – Sim! Hoje vivemos com as doenças transmissíveis, as crônico-degenerativas e a violência (urbana e no trânsito). Só que esse futuro é agora, é já. Então eu tenho que fazer mudanças que não são triviais, de apenas alguns procedimentos. É mudança cultural, profunda; onde a mudança que é ver o paciente como sujeito, como um dos pilares, o que não é simples.

RR – Quem precisa ver o paciente como sujeito: o médico, o sistema ou o próprio paciente?

NI – Os três. O paciente se vê em tese como sujeito. Mas quando ele vai entrar no sistema não o deixam se manifestar. Ele não consegue ser ouvido. Um exemplo é: quando eu sinto uma dor, um problema, de acordo com meu padrão de cultura e de classes, eu penso alguma coisa. Imagino um diagnóstico. Aí quando vou ao médico, estou pensando nisso e o médico fala que é outra coisa. Isso pode, de certa forma, me confortar ou pode não confortar e eu continuo com a minha cultura. Quando o médico orienta a fazer determinadas coisas, eu tenho que acreditar naquilo, caso contrário não faço.

RR – A tripla carga de doenças (as dos séculos XIX, XX e XXI) com que o Brasil lida fez evoluir de um olhar interno para a área da saúde a uma visão mais abrangente sobre o paciente? A intersetorialidade, ou multisetorialidade, já é vista com a devida importância que tem para o SUS?

NI – A intersetorialidade entra como fator determinante da qualidade da saúde. Morar mal, não ter emprego impacta a saúde. Quando você estabelece uma política de austeridade você arrocha todas essas questões sociais que influem sobre a saúde. Em um primeiro momento, há o aumento de suicídio, depois vai piorando porque o Estado sai do cenário e a culpa por tudo é do indivíduo. A coisa da assistência social pode parecer bobagem, mas à medida que você estabelece uma renda familiar mínima, você dá uma condição mínima para o cidadão. A questão da aposentadoria também é central. Cada vez mais existem episódios em que a pessoa adoece e não tem mais condições de voltar ao trabalho nas mesmas condições que estava. Quem vai sustentar? Essa intersetorialidade sempre existiu, mas ela, agora, aparece com força não só na causa ação, mas como remédio.


Fonte: Portal REGIÃO e REDES, acesso em 26/07/2019

Nenhum comentário:

Postar um comentário